Capítulo 2.1.

Thanos usa
uma privada
automática

Cabeça do genocida saindo de uma privada
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Os olhos escancarados de Jair miravam o teto do quarto escuro. Toda vez que os fechava, via o rosto do antigo instrutor de judô bem de perto. Não se tratava mais de um pesadelo, se mesmo acordado via e sentia Aristides. Estava mais para um espírito a assombrá-lo, resgatando não apenas as dores físicas, mas principalmente as humilhações ao longo do longínquo período no meio militar.

Não dormiu mais. Guardava um ressentimento difuso por todos os seus antigos colegas. Como estariam agora? Muito provavelmente estagnados na base da hierarquia militar enquanto Jair era nada mais, nada menos que o comandante supremo das Forças Armadas.

Sentia-se poderoso.

Cabeça do genocida

Mas quando teve de se levantar, nem tanto.

Adriano Machado/Reuters

Bolsonaro precisava caminhar setenta metros da cama até o banheiro da suíte presidencial do Palácio do Alvorada. Ele se perguntava se valia a pena sair debaixo do edredom e sentir no corpo descoberto os 17º graus do ar-condicionado. Fora que já passava das quatro horas e, logo de manhã, haveria uma reunião. Agora, de cabeça, ele não se lembrava quais eram os convidados. Só conseguia pensar no trajeto até o vaso sanitário. Não tinha certeza se, mais uma vez, o intestino, ainda sensível e irregular, estaria lhe pregando uma peça, como um palhaço enchendo o traseiro de talco e Talvez fosse precisamente isso, e a vontade de defecar se satisfaria em meras flatulências.

Ele viu Michelle ao seu lado em sono profundo e virou-se na outra direção. Na parede havia um indistinto no breu da noite, que na claridade da manhã, eram tintas escuras arrastadas ao acaso sobre a tela. Não era o tipo de , dotada de grande capacidade de envolvimento e profundamente vinculada às aspirações urgentes do povo brasileiro. Para Jair, nem era arte. Aos poucos, aquela imagem foi ficando ainda mais fosca, à medida que Jair fechava os olhos e fazia força para expelir os gases intestinais. Recebeu com decepção a descoberta de que não se tratava de gases. E o sentimento se intensificou ao passar a mão na cicatriz do abdômen onde no passado havia uma bolsa de colostomia.

“Levanta, capitão”

Escutou uma voz masculina e afetuosa proferida das profundezas do inconsciente ou a dois dedos de seu ouvido. Num sobressalto, endireitou-se sentado na cama, acordando a esposa pela quinta vez só naquela noite. Meu Deus do céu, Michelle voltou a se ajeitar sob o edredom. Sempre optou por fingir ter o sono pesado, ideal para alguém disposta a dividir a cama com um sujeito com sérios problemas de apneia.

Sua mensagem de desconforto passou despercebida.

Celular do genocida com um foto sua e de Michelle no dia da posseAlan Santos/PR

Por força do hábito, Bolsonaro já tinha em mãos o celular pessoal que exibia no plano de fundo sua imagem mal-humorada, usando a faixa presidencial e ao lado da esposa. Apesar de ela estar deslumbrante em um vestido rosé, era sempre a faixa presidencial que puxava um sorriso no canto dos lábios do presidente.

Ao digitar a senha de quatro dígitos, referente a um ano do qual se recordava com nostalgia, era como se chegasse ao aeroporto de uma capital sulista na época de campanha. Havia centenas de notificações e, quando estava em vias de abrir o WhatsApp, sentiu o ar frio arrepiar as costas e o bolo fecal pressionar a extremidade das entranhas. Tinha a leve noção de que ao abrir o aplicativo, iria se entregar ao canto das sereias. Não sendo afeito a ponderações, invariavelmente se lançaria ao mar, tão logo chegasse ao trono.

Jair preferia chamar o vaso sanitário de trono. Achava graça até quando acordava cansado e sozinho no meio da madrugada. Se no passado fora o principal expoente do baixo clero, hoje era o membro mais importante da aristocracia. Em seu palácio, tinha à disposição muitos cavaleiros, servos e bobos da corte. Teria gostado mais de morar em um castelo, onde haveria uma sala do trono para receber seus súditos e masmorras para receber seus inimigos. Uma de suas extravagâncias foi pedir que providenciassem uma coroa. Melhor que o regime militar, só mesmo o período imperial. Mas foi um pedido feito em tom de brincadeira. Ele sabia que, enquanto houvesse Democracia, o sonho de ser coroado permaneceria muito distante.

Insatisfações à parte, uma das comodidades que mais lhe agradavam no Alvorada eram os vasos sanitários. Não havia nada igual no País e dificilmente haveria em seus próximos anos no poder. Os vasos de última geração estavam à altura de alguém à frente de uma das maiores economias do mundo. Em sua direção, avançava um senhor de cuecas.

O assento da privada era bem quentinho. Jair havia solicitado a instalação de aquecedores após voltar de uma inesquecível viagem ao Japão. Olhou para baixo, onde em primeiro plano estava o celular e ao fundo a cueca verde-oliva a seus pés. Abriu o WhatsApp e, na lista de conversas, havia mensagens não lidas de integrantes de todo escalão dos governos oficial e paralelo. Ignorou todas porque, além de sentir que trabalhara muito no dia anterior, sentia-se esgotado, ainda que seu recente desempenho sexual tenha deixado muito a desejar. Não queria comprometer aquele momento tão necessário de alívio e acolhimento. Precisava se distrair com algo engraçado e, ao olhar ao redor, lembrou-se da magnífica

PIADA

DO COCÔ

Ai, meu Deus, de novo não, Michelle tapou os ouvidos com o travesseiro. O tom da risada não deixava dúvidas: ele estava regurgitando alguma de suas piadas. Ela se afundou na cama, em posição fetal, se protegendo num casulo. Agradeceu a Deus por não estar ao lado do presidente, por poupá-la do esforço de sorrir de coisas tão tolas.

Bolsonaro sentiu uma dor no estômago. Não porque estava no trono, mas sim porque tentava segurar a risada para não acordar a esposa, cujo senso de humor era vulnerável a palavras sujas tão frequentes nos discursos dele. Tinha em mente uma piada autoral, aprovada pelos filhos e pelo Gabinete do Ódio. Antiga, mas nunca sem graça.

Jair manteve o abdômen contraído e esperou pelo efeito da gravidade. Fechou os olhos, soltou a respiração devagar e logo se sentiu transportado para Parnaíba, no Piauí; mais precisamente na escola Jair Messias Bolsonaro. Foi a primeira de muitas escolas em sua homenagem, orientada pela disciplina militar, que tanto fez falta no discurso de inauguração. Falou do pai da Michelle, que é cearense, cabra da peste, conhecido como Paulo Negão, com quem se dá muito bem, ainda que seja pardo e cabeça chata. Falou dos governadores que vão transformar o Nordeste em Argentina, se a população não comprar armas para impedir, em nome do senhor Jesus, a ideologia de gênero nas escolas. A propósito, falou também da escola, mas muito pouco. Hoje só se lembra do nome dela. O que ficou marcado mesmo foi o momento em que encaixou pela primeira vez a piada do cocô, que foi recebida por uma multidão apaixonada.

“Vamos acabar com o cocô no Brasil”, foi a deixa para a plateia ir à loucura.

Mesmo na avaliação de Jair, a reação foi um pouco precipitada, mas tudo bem; isso só aumentava a expectativa para a cereja do bolo:

Ele fechou os olhos e flutuou no mar de sons da multidão que o ovacionava… mito! Mito! MITO! Arrebatado da humanidade e a meio caminho de Deus, ele sentia o corpo feito de plumas que venciam a gravidade em direção ao céu judaico-cristão-ocidental.

Alan Santos/PR

Sentindo-se mais leve, Bolsonaro deixou o celular no chão e puxou um pedaço de papel higiênico. A tela ainda estava acesa e a cada notificação, o aparelho vibrava impaciente. Eram suas amantes, uma classificação que Jair estabeleceu para aqueles que queriam trocar mensagens com ele depois da meia-noite.

~~x~~

A casa caiu, capitão! 😱😱

Enviou um número não registrado. Acima dele, havia uma notificação do grupo Bolsofeios, administrado por seu filho Eduardo, exibindo três emojis rolando de rir, um de óculos escuros e dois gestos de arma com a mão. Aqueles garotos eram muito engraçados! E mesmo antes de acessar o grupo, um sorriso já estava estampado no rosto do presidente.

Fazia quinze minutos que Jair estava descolado da realidade. Aqui, realidade no sentido mais estrito, objetivo e trivial: a do sujeito que acordou no meio da madrugada para defecar. Se não estivesse distraída com memes, sua consciência poderia se atentar para o horário, mas...

Opa, olha isso aqui! Fizeram uma montagem minha com aquele filme dos super-heróis!

Ainda que nunca tivesse visto Os Vingadores, seu filho Carlos explicou quem eram os personagens. Este é o vilão Thanos.

Carluxo Pitbull

Esse grandão aí tem cara de cabra macho 💪

Carluxo Pitbull

No filme, ele estala os dedos e extermina metade da população do universo 😅👊💥

Então é esse mesmo! Faz uma montagem aí com a minha cara kkkkkkk

Carluxo Pitbull
Dudão Calibre 38

🤣🤣🤣😎👉👉

Apesar dos pesares, não havia como negar o talento do garoto, a quem Jair creditava sua vitória nas eleições. Em retribuição, ele fazia vista grossa às suspeitas de comportamentos desviantes do filho preferido. Sabia que o garoto estava passando por um momento difícil… e, aliás, não só ele. Sistematicamente, a imprensa canalha perseguia toda a sua família, como se eles fossem um grupo de milicianos.

Para que isso, meu Deus, ele se perguntava, enquanto fechava o punho amassando o papel higiênico dobrado de qualquer jeito. Canalizava sua raiva ali, na bola de papel, pressionada como se sua intenção fosse esmagar todos os coliformes fecais. Por que foram atrás da avó da Michelle, dos amigos do Flávio, da esposa do Eduardo, do primo do Carlos e das ex-esposas alocadas em seu gabinete?

Cabeça de Flavio Bolsonaro

O que diabos sua família
tem a ver com a presidência!?

Cabeça de Carlos Bolsonaro

Só precisou apertar um botão na lateral do vaso para a indignação se arrefecer com um jato de água morna entre as nádegas. Mais uma vez, olhou admirado para a montagem no grupo. A habilidade do vilão da Marvel de eliminar todos os comunistas era apenas um detalhe. Na perspectiva de Jair, congelada na época em que os heróis eram torturadores, era suficiente ver seu rosto estampado em um corpo robusto e sarado. Enviou uma mensagem de “kkkkkkkkk” e em seguida perguntou se os filhos já haviam compartilhado nas redes.

~~x~~

A casa caiu, capitão! 😱😱

Sei que o senhor está online, capitão. Me responde! 😩🙏🥺

Enviou o mesmo número desconhecido.

“Você quer o quê?”, respondeu Jair, ainda que a contragosto. Era absurdo um presidente não ter a privacidade preservada nem para ver o zap de madrugada e no banheiro sem ser incomodado. A resposta veio em uma mensagem de áudio.

Ainda que tivesse o costume de enviar áudios, Jair odiava recebê-los. Esse último nem dava para ouvir porque não havia memória suficiente no celular. O armazenamento se esgotava quase que diariamente pelo recebimento massivo de memes, áudios, vídeos e informações de origem duvidosa. Abriu a galeria para apagar alguns vídeos, conforme o filho Carlos havia explicado. Manteve aqueles cujas capas mostravam sua imagem, a bandeira do Brasil, alguém da oposição ou mulheres nuas. Resolveu apagar alguns vídeos religiosos.

Agora poderia baixar o áudio:

00:00
01:01

Capitão! Bom dia, capitão! Ai, que bom que tá acordado! Precisava muito falar com o senhor. Faz tempo que a gente não se fala, né? Aconteceu alguma coisa? Não sei se ficou magoado comigo, mas quero que o senhor saiba que eu não passei nada pra nenhum jornalista. Acho que foi o pessoal lá do grupo do Jair Opressor. Eu te juro por Deus que não fui eu! Tamo junto ainda, capitão, o senhor sabe disso, né? Então, tenho que te falar uma coisa. Hoje eu fiquei sabendo que o Lagosta vai...

A mensagem tinha mais de um minuto, e Jair se distraía facilmente e estava cansado. Parou de ouvir quando recebeu a mensagem no Bolsofeios: “Essa vai pro meu Twitter kkkkk”, enviada pelo filho Carlos.

Não teria percebido que já estava muito tarde se não fosse pela incômoda transpiração das coxas repousadas no assento aquecido pela tecnologia japonesa. Isso levantava duas hipóteses: Michelle havia configurado uma temperatura mais alta; ou Jair passara muito tempo sentado no trono. Ele não se lembrava a que horas havia se levantado, mas, lá fora, a noite já não estava tão escura.

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