A voz de anime da privada cortou o silêncio do alvorecer, assim que as coxas suadas de Bolsonaro se descolaram do assento, disparando a descarga automática.
Ele abriu um sorriso, mesmo sem o conhecimento elementar de japonês. Reconhecia o primeiro trecho: um agradecimento, talvez uma saudação. Uma das poucas palavras que aprendera em sua visita ao Japão no primeiro ano de governo. Não importava o que falavam, a resposta era sempre o mesmo arigatou. Ainda hoje a palavra tinha residência fixa em sua memória por uma espécie de adestramento: sempre a mesma voz alegre e jovial, como se ali houvesse uma apoiadora, incentivando o presidente a defecar mais vezes.
Desprovido do vocabulário de uma smart toilet, Jair distribuiu sorrisos e agradecimentos, quando esteve no Japão, em sua primeira longa viagem para atrair investimentos estrangeiros. Pela forma como era retratado pela mídia internacional, não era nenhuma surpresa a hesitação generalizada dos líderes mundiais em se aproximar dele. Precisava passar uma boa impressão e, com a repetição exaustiva dos arigatous, os anfitriões chegaram a acreditar que o Brasil tinha um presidente muito educado.
(づ ◕◡◕ )づ
Só que não durou muito
(っ˘̩╭╮˘̩)っ
Já no jantar com o primeiro-ministro japonês Shinzō Abe, Jair rejeitou todas as refeições. Não gostava de peixe cru (coisa fresca), nem bebidas com saquê (coisa de mulher), nem sabia comer usando os pauzinhos (coisa de viado). Em momento algum lhe pareceu uma desfeita. Era indiferente, pois, para conquistar Abe, apostava tudo em seu carisma natural que o conduziu ao cargo mais importante do país.
— Isso aqui é uma comida muito tradicional no Brasil — disse ao intérprete, mostrando um pacote de macarrão para o primeiro-ministro. — Se chama miojo.
Abe olhou com desinteresse, como se passasse em frente à prateleira de macarrão instantâneo no supermercado.
— Ele disse que conhece — disse o intérprete. — Os japoneses também consomem muito aqui.
— Se eu soubesse, não tinha trazido dez pacotes pra cá — Jair comentou rindo e dando tapinhas no colo do intérprete. — Pergunta qual o sabor preferido dele?
O primeiro-ministro revirou os olhos e disse uma palavra.
— Camarão — traduziu o intérprete.
— Camarão é bom, very good — disse fazendo um joinha para Abe. Em seguida, voltou-se para o intérprete. — Fala pra ele que meu sabor preferido é galinha caipira.
Abe concordou com um sorriso torto e envergonhado. Ficou em silêncio, tomou um gole de vinho, lançou um olhar para os lados, acenou para um conhecido do outro lado da sala, apertou a mão da esposa sob a mesa, olhou uma notificação no celular, as horas no relógio e, de esguelha, para Jair; balançou levemente a cabeça, direita, esquerda, direita, esquerda, respirou fundo, fechando os olhos, e tomou mais vinho.
Itsu Inouyek/AP
Mais do que da primeira vez.
— Pergunta se ele quer provar o miojo do Brasil pra ver se é melhor que o daqui.
Sem esperar pela resposta, levantou o braço, gritou “ô, chefe” e atraiu a atenção de um garçom. Quando ele se aproximou, Jair pediu, em português, para preparar o miojo. O garçom não entendeu nada. Puta que pariu, não sabe nem fazer um miojo? Ele respirou fundo, pensando irritado em como explicaria o preparo para o Xing Ling.
— Você faz assim, ó — colocou o pacote na palma da mão. — Hot water — gesticulou como se segurasse uma chaleira, despejando água no macarrão, enquanto a boca expelia um chiado de cachoeira.
— Lámen? — perguntou o garçom.
— Não sei — suspirou Jair. — No speak japanese.
O intérprete foi socorrê-lo. Em menos de dez segundos, tudo estava resolvido.
— Arigatou! — disse o presidente.
O garçom se curvou de leve e sorriu antes de deixar a sala. Jair se voltou para o intérprete e perguntou:
— E o Abe falou o quê?
— Ele não vai experimentar, presidente, disse que já está satisfeito.
Jair deu de ombros e sussurrou ao pé do ouvido do intérprete:
— Ele tá é com medo de perder que nem na Copa da Alemanha em 2006 — deu uma risadinha, pedindo para que não traduzisse essa parte. — Pergunta se ele já provou a comida do Brasil.
Acompanhava a troca de palavras estrangeiras com um olhar curioso e um sorriso tolo. Fora o nome dos pratos brasileiros, tentava reconhecer alguma palavra daquela algaravia. Os sons de ka, ko e ku eram muito recorrentes. Para Jair, era um idioma muito feio. Parece que falam de cu o tempo inteiro, refletiu com desprezo; alheio ao fato de que nunca uma autoridade representativa do Brasil falara tanto em cu. Se por acaso, ele se desse conta disso, sentiria orgulho e acharia tudo muito engraçado.
— Ele disse que não conhece muito da culinária brasileira porque só esteve no Brasil em duas ocasiões. Experimentou moqueca, acarajé, bobó de camarão e cocada, em um almoço com a ex-presidente Dilma, e achou tudo delicioso. Disse que existe um prato japonês muito parecido com bobó de camarão, chamado… — parou para tentar se recordar o nome — é… me desculpe, presidente…
Jair não poderia se importar menos.
— Ku-na-ka-ma — o intérprete inventou uma palavra, exausto de intermediar aquela conversa e ciente do desinteresse do presidente. — Esse é o nome do prato.
— Ahã… e o que mais ele disse? — perguntou Jair ainda com uma pulga atrás da orelha.
— Bem, em sua segunda visita ao Brasil, ele comeu feijoada com alguns políticos e autoridades… — o intérprete já previa para onde essa conversa iria desviar. Não seria a primeira vez, desde a chegada ao Japão.
— Sei… e quem tava lá?
— Algumas autoridades… — o primeiro-ministro só havia identificado uma delas. — Por exemplo, o ex-presidente Lula…
Jair fechou a cara e lançou um olhar de aversão para o primeiro-ministro. Transportou-se para um silêncio reflexivo. Não se tratava de uma ocorrência isolada. Quem o conhecia de perto, com certeza, já presenciou seu deslocamento para a dimensão paralela das teorias conspiratórias.
Era um ambiente hostil onde ele se via no centro do universo, cercado por inimigos. Excepcionalmente, desta vez, em território desconhecido, com agentes desconhecidos conspirando num idioma desconhecido. Estava diante de alguém que não apenas guardava boas lembranças da culinária brasileira, mas principalmente da companhia do bandido que assaltou o país por oito anos.
Será que ele também é comunista?
Deve ter vários deles em tudo que é canto…
Tudo com cara de chinês, norte-coreano e vietcongue.
Todos de ditaduras apoiadas pelo PT.
— Fala pra ele que o Lula é o maior corrupto da história do Brasil. Que ele foi condenado por roubar bilhões da Petrobrás e agora tá preso lá em Curitiba, graças ao juiz Sérgio Moro que é o meu ministro da Justiça.
"Ru, bu, ma, re, na, ka, ru, ko, ku, blábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblábláblá"
Não adiantava prestar atenção nos ruídos alienígenas do intérprete e do simpatizante do Lula. O sinal de alerta vermelho-comunista brilhava feito uma viatura parada em frente a um diretório acadêmico na época do regime militar. Uma luz que guiava suas reflexões cheias de tropeços.
Não dá pra confiar nesses japas.
Por que insistem que eu coma peixe cru?
Já disse que não gosto dessa porra.
Ainda bem que tenho minha própria comida.
— Acho que ele não entendeu direito, presidente — disse o intérprete. — Como o juiz que prendeu seu principal adversário político pode se tornar seu ministro da Justiça?
Puta que pariu, esse daí só tem cara de inteligente, pensou Jair. Na época, ainda vivia um relacionamento de muita cumplicidade com Sergio Moro. Defendia o ministro com a mesma ênfase empregada em sua própria defesa ou na dos filhos, sob suspeita de envolvimento em múltiplas ilegalidades. Agora, se era para dizer o que o mundo inteiro já deveria saber, logo perdia a paciência. Queria dizer que aquele japonês nem se deu ao trabalho de se informar superficialmente sobre a situação política do país do ilustríssimo visitante.
Sobre o ilustríssimo, convém pontuar:
Ele não sabia nada sobre o Japão
(。•́︿•̀。)
Ao menos, tinha viajado até lá
(.❛ ᴗ ❛.)ノ
Aprendeu pouco desde que chegou
(⋟﹏⋞)
Ainda tinha dois dias pela frente
(´・ᴗ・ ` )
Se por um lado, Bolsonaro não ia atrás de informação para além do WhatsApp, por outro não passava vergonha por fazer perguntas idiotas a outros chefes de Estado. Receber tais perguntas, contudo, era outra história. Quanto mais estúpida, melhor ele se saía. Falava com mais desenvoltura, sem as pausas que poderiam marcar momentos de reflexão se não estivessem inseridas em discursos indigentes. Cheio de confiança, Bolsonaro se dirigiu ao intérprete.
1# Shinzō Abe comunista
— Explica pra ele que o ex-juiz Sérgio Moro mandou prender o ladrão de nove dedos em abril do ano passado. Aí em outubro, teve as eleições contra o PT. Eu ganhei mesmo com esse lixo de urna eletrônica, o povo brasileiro me escolheu, quem apoia o Moro também me escolheu, e logo depois, eu o convidei pra ser meu ministro… aliás, meu superministro da Economia (sic). Ele aceitou quase que imediatamente, mas pra ocupar o cargo, teve que abandonar a carreira de juiz.
Sentia-se todo empolgado por contar qualquer detalhe referente à conquista da presidência. Prosseguiu atropelando as palavras:
— Pra falar a verdade, foi que nem um casamento arranjado, sabe, como era na época dos nossos pais — alterou brevemente o tom ufanista para fazer um pedido. — Inclusive, depois você pergunta se ele já conhecia a esposa antes de se casarem. Com essa cara, parece que ela não gosta de acompanhar o marido. Eu sei disso, porque a Michelle estaria com essa mesma cara se estivesse aqui.
— Presidente…
2# Shinzō Abe comunista
— Ah, sim! Tava falando do Moro. Eu não o conhecia pessoalmente, né, mas o povo brasileiro queria que a gente ficasse juntos e…
Se o intérprete não tivesse interrompido para realizar a tradução, Jair teria explorado ainda mais as comparações entre relações conjugais e alianças políticas. A prolixidade estava longe de ser uma preocupação, principalmente quando tinha tanta coisa bacana para dizer. O intérprete que se virasse. No mesmo instante em que deixou os esquisitos conversando, voltou a se entregar às paranoias.
Pela manhã, ele se reuniu com representantes da comunidade brasileira no Japão, que lhe concedeu 92% dos votos nas eleições do ano anterior. Falou sobre a missão mais importante de sua vida: pôr fim à corrupção e ao comunismo; ouviu a contraparte japonesa, tão bem-sucedida que ninguém soube citar qualquer caso de corrupção.
Em relação ao comunismo, havia uma grande preocupação com o aumento das comunidades de chineses e vietnamitas. Era generalizada a suspeita de que estava em curso um movimento para infiltrar agentes comunistas nas estruturas de poder. No Brasil, muitos deles só foram descobertos depois que o general Heleno fez uma devassa em todos os servidores do executivo. Haveria alguém com a competência do general à frente da Inteligência japonesa?
Um deles tá preparando meu miojo
Puta merda, pra qual deles eu pedi?
Era um com cara de mulherzinha, mas é tudo igual!
Ah, eu é que não vou comer!
Não dá pra comer, enquanto não resolver isso daí
— Ele está perguntando por que o senhor escolheu o ex-juiz Sérgio Moro.
— Pra acabar com a corrupção, oras!
Bolsonaro bateu as mãos no colo, ameaçou que iria se levantar, mas voltou atrás. Tomou um gole d'água e engasgou assim que se deu conta de que ela poderia estar envenenada. Ficou de cabeça baixa, tossindo como um escapamento de carro antigo. Ao se levantar para ajudá-lo, o intérprete levou um soco de Jair na região genital, endereçado para o primeiro comunista que se aproximasse. Como o intérprete era um suspeito pouco provável, considerou, por um piscar de olhos, que o golpe poderia ter sido mais fraco.
Ondas dolorosas se espalharam pelo quadril do intérprete, que teve de segurar a respiração para não dar sinais mais explícitos de dor, além do corpo curvado e das pernas pressionando uma à outra. Nem bem havia se acomodado na cadeira e já sentia mais dores, agora na cabeça, ao escutar a voz irritada de Jair.
— Se esse japa continuar fazendo só pergunta idiota, eu vou ter que ir embora, porra! Parece aqueles canalhas da Rede Globo!
3# Shinzō Abe comunista
O presidente teve de respirar fundo. Estava com raiva, ou com medo? Passou rapidamente o olhar pela enorme sala. Não estava muito cheia. Dois olavistas e o intérprete compunham a comitiva brasileira. Os demais eram japoneses. Alguns homens, poucas mulheres. Uns de terno, outros de uniforme. Uns sentados, outros de pé. Todos muito parecidos entre si, mas diferentes dos repórteres brasileiros. Portanto, estava com raiva.
— Olha só — fez uma pausa para corrigir o tom de voz — aqui no Japão é muito diferente, então não sei se você vai entender. O Brasil era a terra da roubalheira e da ladroagem. Durante os 13 anos que o PT governou o país, eles promoveram o maior assalto da história aos cofres públicos. Foram trilhões de reais desviados. Tinha até dinheiro na cueca de assessor. Agora nós estamos tentando reconstruir o Brasil. Vamos completar um ano de governo sem nem um escândalo de corrupção — fez uma pausa enfática para cada palavra. — Nós acabamos com a mamata!
Outra vez, sentiu-se excluído no intervalo de troca de mensagens criptografadas. A esposa de Abe, calada durante todo o jantar, parecia inquieta, olhando o celular a todo momento. Esperando uma mensagem do governo chinês, quem sabe. Dois empregados suspeitos conversavam em voz baixa. O assunto não poderia ser outro: Jair Messias Bolsonaro. A única conclusão compatível com a frequência com que pousavam os olhos sobre ele. Com um olhar de poucos amigos, como se estivesse reforçando a convicção de moer comunistas no soco, conseguiu deixá-los desconfortáveis e em silêncio. Nessa hora, a atenção de Jair se deslocou para a pequena bandeira japonesa nos uniformes deles.
Aquela bola vermelha, bem grande e no centro, só pode ser coisa de comunista.
Enquanto isso, o intérprete se desdobrava para traduzir o termo “mamata” e Abe demonstrava o mínimo de interesse acenando com a cabeça.
— Very good — disse o primeiro-ministro diretamente para o presidente.
Um sorriso largo iluminou o rosto de Jair. Finalmente, recebia algum reconhecimento, uma satisfação breve, interrompida por seu instinto de sobrevivência, disparado com a chegada do prato de miojo coberto por uma cloche. Que necessidade haveria em usá-la se não fosse para esconder o prato envenenado ao longo do trajeto entre a cozinha e a sala de jantar? Por que o garçom mantinha o sorriso estampado como se estivesse servindo um prato de alta gastronomia? Era um jovem debochado, com carinha de comunista, que, com certeza, não tinha a mínima ideia do terror que os comunistas soviéticos impuseram ao mundo durante a Guerra Fria.
O garçom baixou os olhos, curvou-se para frente e disse algo em japonês.
— Ele disse “bom apetite” — traduziu o intérprete.
— Arigatou! — respondeu o presidente no automático, seguindo com olhos espremidos, como se de trás de uma luneta, o garçom deixando a sala.
A desconfiança preenchia a mente de Jair com uma série de indagações.
Por que não me livrei dele antes?
Será mesmo que votou em mim?
E essa cara de quem vota no PT?
E se disse que votou em mim só pra se aproximar?
É o que um infiltrado faria, não?
Quantos grupos de patriotas ele tem no zap?
Será que lê todas as mensagens?
Alguém lê todas as mensagens?
Eu tenho ele no zap?
Por que demora tanto tempo pra responder?
Aliás, tempo pra comer esse miojo?
É de galinha caipira, será?
Quando foi que a gente se conheceu?
Isso tudo é medo?
Ele tá mesmo com medo de comer miojo?
Será porque tá envenenado?
Porque ele tá envolvido?
Porque é um traidor da pátria?
Um agente do comunismo japonês?
E do comunismo chinês?
E da Nova Ordem Mundial?
Na falta de seu provador de comida oficial, Bolsonaro pediu para o intérprete experimentá-la. A princípio, até lhe pareceu um gesto de gentileza, por isso, recusou, dizendo estar satisfeito. Então, Jair teve de se expressar com mais clareza, subindo o tom como se reagisse a uma pergunta indesejada de uma jornalista. Se tivesse que perder alguém de sua comitiva, que fosse o menos alinhado à extrema-direita. O cálculo era feito a partir das redes sociais e o resultado do intérprete ficou no limite da direita tolerada, a um passo de distância do espectro comunista. Não era para menos. Ele nunca compartilhava fake news, não fazia comentários ofensivos em perfis de esquerda, não curtia posts de militares, não tentava recrutar usuários para algum esquema de pirâmide. O que o posicionou mais à direita foi uma declaração de voto em Bolsonaro no Facebook. Ou seja, faltava-lhe o fanatismo bolsonarista até então indispensável para acompanhar de perto o presidente. Foi um descuido, passível de imediata resolução, livrando-se do sujeito agora mesmo.
Quando o intérprete experimentou o macarrão, os pensamentos de Jair se voltaram para uma direção mais pragmática ao se recordar que estava no Japão e não falava japonês. Se ele morrer, eu tô fodido. Onde é que vou arrumar outro? Mesmo assim, insistiu para ele comer mais um pouco. Deixou passar alguns minutos e, para a surpresa de zero pessoas, com exceção do presidente, nada aconteceu.
Shinzō Abe observava a cena com uma expressão despojada de sentimentos. Obrigou-se a se manter assim, imperturbável, ainda que, à sua frente, um dos principais líderes políticos posasse para uma foto com um prato de macarrão instantâneo. Pediu equilíbrio e serenidade aos ancestrais. Nunca tivera grandes expectativas pelo encontro. Infelizmente, levou tempo demais para se dar conta desta inutilidade e agora, pressionado pelas formalidades, não se sentia à vontade para se levantar e ir embora. À parte do desperdício de tempo, o encontro lhe garantia doses de entretenimento, desprezo, desconforto, constrangimento, revolta, incredulidade e desconfiança. Muitas emoções em pouco tempo de convivência. Veio também o alívio por não conhecer figura semelhante na política japonesa e ao se dar conta de que a interlocução com o presidente brasileiro se encerraria com o fim do jantar. Já os brasileiros teriam ainda alguns anos de atraso. Embora a benevolência não fosse uma característica marcante do primeiro-ministro japonês, ele se sentiu compadecido pelos miseráveis do outro lado do planeta.
Franck Robichon/AFP
O jantar estava próximo do fim. Os garçons trouxeram um bolinho branco recheado com uma pasta marrom de sobremesa. Como tudo na culinária japonesa, não agradou ao rústico paladar do presidente. Foi apenas uma mordida. Não era algo detestável, mas era insosso e insólito. Uma vez informado de que a massa era preparada com arroz e o recheio com feijão, tudo fez sentido, e o presidente gostou ainda menos do prato. Que tipo de gente faz doce com arroz e feijão? No tocante à gastronomia, a cultura deles estava toda errada. Em outros aspectos, contudo, despertava profunda admiração no presidente.
— Nós, brasileiros, admiramos muito os japoneses — deu início ao discurso ensaiado, proposto pelo jornalista e amigo . — Mesmo vivendo numa pequena ilha com zero riquezas no subsolo, litoralzinho, vulcões, terremotos, tsunami, duas bombas atômicas, solo que não dá pra correr o trator mais de vinte metros; mesmo assim vocês conseguiram transformar o Japão em uma grande potência mundial.
Parou para tomar um gole de água. À medida que sua mensagem ganhava versão em japonês, os músculos faciais do primeiro-ministro apresentavam discretas inflexões. Aquele povo era bem conhecido pela seriedade e, embora a expressão de Abe denunciasse no mínimo desconforto, não duraria muito, pois o trecho bajulador estava por vir. Com um tom de voz mais leve, Jair prosseguiu com risadinhas e sorrisos:
— Eu gostaria, meu caro primeiro-ministro Shinzō Abe, que um dia nós trocássemos a população de nossos países. Eu mandaria 210 milhões de brasileiros pra cá e receberia 125 milhões de japoneses no Brasil. Eu não sei como ficaria a situação por aqui — soltou uma risada — não quero nem pensar! — esperou, com um sorriso, pela tradução. — Mas com o nosso solo, o nosso clima, o nosso litoral, as nossas riquezas naturais; tenho certeza que vocês, japoneses, transformariam o Brasil na primeira potência do mundo em dez anos!
O primeiro-ministro obrigou-se a rir. Pelas convenções da diplomacia, um comentário tolo não deveria ser rechaçado, sobretudo quando colocado para fora pela autoridade máxima de 200 milhões de pessoas. Mesmo estarrecido pela vassalagem brasileira, tentou fazer algumas reparações.
Por alguns segundos, o intérprete hesitou em transmitir a mensagem.
— Ele disse que não precisa trocar a população para o Brasil se tornar uma grande potência. O primeiro passo é escolher representantes melhores.
Para a surpresa geral de sua comitiva, o presidente concordou com convicção, como se o primeiro-ministro tivesse sugerido o deputado Arthur Lira para a presidência da Câmara. Em seguida, acrescentou:
— Tem muito brasileiro que ainda não sabe votar direito. Passamos por mais de duas décadas de governos socialistas e o resultado foi a destruição completa da economia. Se não tivéssemos tomado o poder, hoje o Brasil seria uma Venezuela ou uma Coreia do Norte.
Abe lançou um olhar para cima e expirou o ar dos pulmões lentamente. Concordou com um aceno de cabeça e, desviando a atenção para o relógio no pulso, trouxe a necessidade de ir embora. Levantou-se para se despedir e olhou ao redor procurando pela esposa, que já havia saído discretamente sem se despedir. Viu que ela havia deixado algumas mensagens.
Kyodo/AP
Traduzir
Anunciada a hora de partir, Jair se inclinou mais perto do intérprete e perguntou em voz baixa:
— Como é que fala: “da próxima vez, você vai comer a minha feijoada e eu vou comer o seu…”
— O seu o quê? — perguntou o intérprete impaciente, sentindo o dele na mão.
— Não interessa! — repreendeu Jair. — Só me diz como é que fala.
— Não é assim que a língua japonesa funciona.
— E eu lá tô interessado em aprender japonês.
O primeiro-ministro estava de pé, esperando o presidente terminar a conversa privada com o intérprete.
— Jikai wa — recitou Jair para seus anfitriões. — Watakushi no feijoada wo... como é que é o resto mesmo? — perguntou virando-se para o intérprete. — Meshi… opa, essa aí é complicada, hein — deu uma risadinha e tentou de novo. — Meshiagarimasu ne… kunakama.
O presidente jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada cheia de fôlego. Os japoneses ficaram sem entender. Já o intérprete preferia não ter entendido, sem acreditar que a memória seletiva de Bolsonaro havia registrado justamente o que não deveria. Prometeu para si mesmo que nunca mais inventaria uma palavra em japonês, mesmo em benefício do entretenimento alheio e se perguntou o que haveria de tão engraçado naquelas palavras.
Da próxima vez, você vai comer a minha feijoada e eu vou comer o seu kunakama!Hahaha! Meu Deus, era engraçado demais! Vem cá, deita aqui, vou comer seu kunakama, Jair pensou com lágrimas encharcando os olhos de tanto rir. Hahaha!Opa, sai pra lá, eu sou macho, pô!Hahaha!É pra comer com pauzinho?Hahaha!Com esse pauzinho de japonês, não vai comer nada não!Hahaha!Nossa, que vontade de comer um kunakama hoje… Micheeeeelle!