Parte 1 - Banheiro

Preliminares

Capítulo 1

Fazendo sinal de coração com as mãos, o genocida que não adquiriu vacinas a tempo de evitar a morte de pelo menos 95 mil brasileiros.Grabriela Korossy/Câmara dos Deputados
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Eram quase duas da manhã quando Jair abriu os olhos e saltou da cama assustado. Estava tremendo, um pouco em virtude do ar gelado no corpo despido, um pouco pelas lembranças residuais de sonhos intranquilos. Disparou direto para o banheiro da suíte presidencial, seu local privado de relaxamento e meditação. Diante do espelho, prestou atenção na topografia irregular do rosto. A testa sulcada sob uma camada de suor parecia um afluente de lama. As pálpebras caíam como uma erosão pelos vales escuros que abrigavam os olhos. Dois vermes enterrados na superfície da areia davam o contorno na parte superior das maçãs do rosto.

Era o retrato da terra arrasada.

Adriano Machado/Reuters

Deu dois passos para trás, perdendo um pouco o equilíbrio. O espelho refletia uma imagem branca da cintura para cima. Assim como o rosto, o corpo inteiro estava acidentado. Os pulmões degradados não excluíam a percepção de falta de ar. Bolsonaro colocou uma das mãos sobre o coração acelerado. No centro de uma área devastada, pulsava um círculo de metal brilhante, capaz de ofuscar imperfeições físicas e morais. Era um Rolex Daytona prateado, concebido para atender às exigências de cronometragem de pilotos de corrida profissionais...

um relógio

muito bonito

com cronômetro.

Uma fortuna congelada na época em que os relógios não atendiam chamadas de celular, não pagavam as compras do supermercado, nem mediam os batimentos cardíacos. Com tanto apreço pelo passado, Jair se sentiria no futuro se acompanhasse o presente. Ele tinha, porém, uma sabedoria ancestral para constatar sob a palma da mão que seus batimentos estavam bem acima do normal. E tentava se convencer de que não era nada além de distúrbios mais contemporâneos como ansiedade e estresse. Não era de hoje que acordava com taquicardia no meio da madrugada, ainda mais depois do recente fiasco.

Olhou para os ponteiros e tentou calcular as horas. O intermediário disse que o relógio valia mais de cem mil reais. Grande bosta, pensou Jair. Não tinha indicação numérica sob os ponteiros e nem visor digital para poupá-lo de calcular os múltiplos de cinco. Era um relógio confuso, que media mais do que as horas. Ao adquiri-lo por uma bagatela, não recebeu o manual de instruções, nem a nota fiscal.

No caso de Jair, um histórico de acumulação indevida das remunerações de funcionários fantasmas.

Aos poucos, foi se acalmando, hipnotizado pelas voltas do ponteiro triangular. Via os segundos passando. Os minutos mais lentos do que de costume. Deveria aproveitá-los enquanto era, em tese, o homem mais poderoso do Brasil. Mas naquela hora, não se sentia assim. Pelo contrário, era o retrato quase completo do fracasso e da impotência. Só não estava completo porque no pulso havia o relógio. Nas palavras do intermediário, todo Rolex conta uma história... no caso de Jair, um histórico de acumulação indevida das remunerações de funcionários fantasmas. E, mais recentemente, uma história sobre fragilidades, ilusões, pequenos prazeres e a incapacidade de satisfazer a esposa.

CASAL HOOSSEXUAL

Foi por insistência de Michelle que ele retirou o relógio do cofre. Ela pediu para vê-lo só de Rolex, faixa presidencial e cueca slip. De início, Jair se sentiu bem desconfiado. Eles só usavam os objetos do cofre quando estavam sozinhos no quarto. Alguns eram valiosos demais e contraditórios à representação de humildade tão bem construída ao longo da campanha eleitoral; outros eram extravagantes, obscenos, verdadeiros profanadores dos valores conservadores e cristãos. Bolsonaro se sentia idiota por atender àqueles caprichos. Precisava mesmo usar a faixa presidencial?

- Amor, você está ótimo! Hoje foi um dia difícil para nós dois, então eu pensei em fazer uma surpresinha - Michelle sorriu e bateu palmas saltitando. - Não acha que essa faixa combina com a minha lingerie nova?

Deu uma volta na ponta dos pés em torno de si mesma, mostrando a lingerie amarela.

- Michelle, se você estiver de brincadeira comigo…

Ela encostou o indicador nos lábios dele, depois seus próprios lábios. Nada mais que um selinho. Nada mais que uma provocação inocente, do jeito que o marido gostava. Pelo menos nas preliminares. Agarrou firme a faixa verde e amarela, deu meia volta em direção à cama, puxou o presidente. Recebeu no bumbum esquerdo uma apalpada, daquelas que deixam a região formigando.

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Exclamou a escolha muito difícil.

Meu Deus… ela se casou com um cavalo, uma voz feminina preencheu a mente da primeira-dama. Uma variação do que se conhece por voz da verdade. Michelle concordou com um aceno de desesperança. A empolgação retraía-se para abrigar a antipatia. Fechou a cara, os olhos, o maxilar e os punhos. Pediu, em nome de Jesus, por uma intervenção divina. Não foi atendida, mas recebeu um alerta em seus pensamentos:

É melhor você relaxar. Todos aqui estamos nos divertindo muito. Você não quer que eu faça uma besteira, não é?

Largou a faixa e coçou o bumbum. Olhou por cima do ombro e viu as marcas brancas das pontas dos dedos contornadas de cor-de-rosa. Tudo bem, não foi nada demais. Talvez conseguisse se enganar… e seguiu em frente, até chegar à cabeceira da cama, onde se sentou para observá-lo.

Não se mexa.

Adriano Machado/Reuters

Examinava-o com um sorriso plastificado no rosto. As pupilas não se moviam um milímetro e em momento nenhum chegou a piscar. Havia algo postiço em sua expressão, sobretudo nos olhos vítreos com um quase imperceptível ponto luminoso.

- Fica aí, amor! - ela disse ao vê-lo se aproximar.

Bolsonaro ficou confuso, bateu um pé no chão e coçou um lado da cueca, já deixando a mão repousada na cintura. Fazia cara de mau. Tinha a testa franzida, as sobrancelhas juntas e os lábios levemente curvados para baixo, exibindo os dentes inferiores em uma faixa amarelada. Michelle fez um biquinho e disse:

- Só mais um pouquinho…

- Olha só, Michelle, eu não tô com a mínima paciência de ficar aqui plantado na sua frente que nem um banana!

- Banana, amor? Não! Estou admirando meu presidente!

Jair soltou uma risadinha e olhou de canto para Michelle.

- E… você tá gostando do seu presidente?

Claro, porque o presidente dela também era presidente do Brasil. Talvez, se ele não fosse… mas, pelo menos, já era um deputado veterano na época em que se conheceram. Prova de que tinha muitos méritos, embora nem sempre reconhecidos. Agora mesmo, as palavras de Michelle ficaram congestionadas na garganta, sem avançar para não interromper os movimentos a sua frente. O marido se adiantou e começou a tirar a cueca bem devagar. Ela ficou em dúvida se ele estava tentando ser sensual. Uma dúvida que nem mesmo Deus conseguiria responder, mas que se dependesse apenas do olhar dela, já habituado com a grandeza e com a miséria, não deixaria de registrar o extraordinário: mesmo com todo o poder, todo o esforço e com a melhor das intenções, não era possível extrair uma imagem sensual, minimamente erótica, do presidente.

Bolsonaro nem se dava conta disso. Depois de ficar seminu, apenas com a faixa da presidência transversal do ombro à cintura, ele fez um gesto de arma com a mão. Na ponta do indicador, pendia a cueca, como se pendurada no varal.

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Exclamou o ex-deputado insignificante.

Tal qual um boiadeiro laçando um novilho, Jair rodou a cueca no ar e lançou em direção à esposa. A peça azul-marinho fez uma parábola à Angry Birds. À esta altura, Michelle já estava protegida. Puxou o edredom de plumas de ganso siberiano, cobrindo-se com uma onda de espuma branca. Embaixo dele, na escuridão parcial, tinha a sensação de estar a anos-luz de distância, em um canto do universo menos degenerado. Uma impressão que durou pouco e parecia nem lhe pertencer. Principalmente agora que o barulho dos passos anunciava a aproximação do marido.

Sério, acho que a gente já viu mais do que deveria, disse a voz em seus pensamentos.

Eu não quero fazer isso, pensou Michelle.

Sinto muito… - o tom da voz parecia agora um eco cada vez mais distante - mas você precisa fazer...

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